Uma sebenta de João Gata para guardar histórias que foram ditas pelas rádios ou publicadas por aqui e ali.


30.9.10

Entrevista em Lx

Há uns tempos, fui entrevistado pelo Nuno Infante do Carmo no excelente programa radiofónico "Banda Sonora", no saudoso Rádio Clube.

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23.9.10

Uma lenda em Lx


N. do A.: A pedido, criei uma lenda para publicação, misturando duas sobejamente conhecidas e dando-lhes um twist. 

As Flores de Sebastião

Sufocava, olhou o monstro bem no olho e apontou. Com um derradeiro esforço, trespassou-o. As suas últimas forças foram também as finais deste bicho que o largou repentinamente no meio de um turbilhão gigantesco de grandes bolhas de ar que deram lugar à enorme nuvem negra que tomou conta de toda a fraca luz existente.
Sebastião quase que se deixou abandonar por esta escuridão que até embalava os últimos momentos da sua vida. Mas não, o seu nome era Sebastião e a sua história não podia terminar assim! Com um derradeiro impulso, girou sobre si e bateu os pés por entre a nuvem cada vez menos densa de tinta negra. Segundos depois conseguiu vislumbrar aquilo que deveria ser o sol, um rasgo de luz bamboleante que de vez em quando soltava uns raios mais fortes que chegavam até si. Mais um impulso, o último... e AR!
Respirou com nunca o tinha feito, nem mesmo quando tinha a certeza que era o seu último, uma sempre e sofrida adiada resolução.
AR!
Respirou outra vez, engasgando-se e tossindo com mais um golo de água salgada que lhe queimava o peito e a memória. Deixou-se boiar sentindo o calor de um sol que pensava nunca mais ver e que lhe fora proibido durante tantos anos. O peso das suas parcas vestes não ajudava ao descanso e por muito que tivesse abandonado as botas, as calças, o escudo, o capacete e partes da armadura, ainda vestia a cota de malha e não largava a espada roubada ao último dos guardas que ainda o aprisionavam.
Virou a cara ao sol e olhou o horizonte. Lá ao fundo, pareceu-lhe, havia qualquer coisa castanha. Seria uma costa, um banco de areia, uma ilha? Olhou outra vez franzindo o olhar vermelho e inchado pelo sal e esforço. Sim, parecia uma linha horizontal, qualquer coisa mais dura que a água e, se fosse sólida, poderia pisá-la.
Decidiu-se, era esse o seu novo destino e nadou muitas horas. Sempre que o cansaço o aconselhava a desistir e o desespero a dormir, surgia-lhe a Honra que o impedia de se abandonar. A Honra tinha sido a sua única companheira desde que, em tempos idos, sentiu e sobreviveu à maior derrota que qualquer rei pode sentir: a derrota de um reino e de um povo. Mas hoje aqui estava ela, sempre forte, sempre tenaz e orgulhosa:
“Não, não vamos desistir agora. Vamos conseguir e vamos conquistar!”
Não se lembra quantas horas passaram, mas acordou com os lábios molhados de areia fresca e com a pele a arrepanhar-se com a secura do sal. O sol confortava-o nesta sua dura cama e abandonou-se assim por mais uns longos minutos. Os seus ouvidos começavam a perceber o que o rodeava. O primeiro som foi do vento, prazenteiro e amistoso. Agradeceu a sua frescura e concentrou-se no som seguinte: eram árvores que se ondulavam como que a convidá-lo para a sua sombra. Olhou e confirmou. Sim, estava em terra com os pés e as mãos no chão! Gritou de alegria e agradeceu à Honra que nunca o tivesse abandonado.
Sebastião tinha conseguido regressar ao seu destino tantos e tantos anos depois. Soube-o imediatamente quando deixou escapar os minúsculos grãos de areia branca por entre os dedos. Sentiu-o sob o sol e o calor ameno que o reconfortavam e pela vegetação verde e díspar que protegia a terra da força do mar tal e qual as muralhas de pedra onde outrora viveu. Recordou-o pela calma de uma terra que ainda espera por se cumprir, que ainda e sempre esperou por ele, o Adormecido.
Agastado como estava, abandonou-se ao enorme alivio por ter chegado à costa numa manhã solarenga e não encoberta pelo afamado nevoeiro que envolveu a sua desgraça. Não teria forças para encarar todos quantos o ainda esperam e aguardam no seu regresso nas manhãs em que a luz se esquece que existe.
Estava exausto e precisava de reunir forças para se reencontrar com a história... talvez mais a dele que a dos que ficaram. Encontrou um caminho que abandonava a costa e que o levou até a um casebre abandonado por gentes que escolheram a cidade como destino. Olhou em volta, vivalma. Esta terra que tanto lhe custou tinha sido abandonada por quem desesperou. Sentou-se e escolheu uma manta velha e esburacada para se cobrir e poder agasalhar-se do frio que a noite algarvia transportava e dormia, finalmente, na sua terra.
Passou a noite na companhia de quem lhe era fiel, a sua Honra e os seus Sonhos de menino. Desde que se lembra, sofreu sempre com os pesadelos sanguíneos que dizimaram todos quantos o seguiram, toda a esperança de um povo até aí conquistador. Acordava sempre sobressaltado procurando em vão a sua espada mas as correntes prendiam-lhe os pulsos e os impulsos. Contudo e desta vez, acordou sem amarras e com o sol a entrar-lhe pela reconquistada vida. Estava frio e decidiu caminhar agasalhado pela manta que lhe serviu a noite. Queria caminhar pela sua terra, senti-la, amá-la e assim iniciou a sua nova demanda.
A cada passo sentia-se mais forte, a cada alimento mais capaz. A cada noite mais descansado, a cada riacho mais revigorado. Mas tudo mudou numa novel manhã: em vez de acordar banhado pelo calor da luz natal, teve que esforçar-se para conseguir ver alguma coisa por entre um denso e escuro nevoeiro que penetrava os seus ossos e medos. Caminhou aos tropeções até encontrar o riacho onde se banhava e descansava, quando começou a cair uma chuva miudinha que se tornava mais forte a cada má memória revisitada. O barulho que a chuva fazia ao cair na sua terra abafava todos os outros sons a que já se tinha habituado. Tapou os ouvidos com a manta, escondendo a sua carne desta nova fúria, temendo que fosse justiça divina ou humana. Cego pelo tecido, não se apercebeu que alguém se aproximava pelo outro lado do riacho. Só quando a chuva acalmou a sua intensidade e descansou numas gotas tímidas, percebeu que estava a ser observado. Sobressaltado, tentou sacar da sua espada mas tinha-a esquecido no casebre. E onde estava a Honra, como poderia ela ajudá-lo nesta altura?
Num repente, uma voz feminina fez-se ouvir.
“Quem és tu?”
Aliviado por não ser um soldado inimigo, respondeu:
“Quem queres que eu seja?”
“Não posso adivinhar, pois estás tapado por essa velha manta...”
“Não estou tapado... estou... Encoberto!”
“Encoberto?”
“Sim, apenas Encoberto.”
“Só se cobre quem algo esconde.”
“Não, apenas cobri o meu corpo desta chuva e escuridão.”
“Então já te podes descobrir!”
“Não será a melhor ideia, pois a chuva pode recomeçar.”
“Garanto-te que não. Ela só regressa amanhã.”
“E como poderás saber disso?”
“Porque a chuva são lágrimas minhas e não consigo evitá-las.”
Sebastião não percebeu como uma chuva tão violenta podia ser chorada por uma criatura que sugeria ser gentil e, enchendo o peito com coragem, destapou-se para poder conhecê-la. Do outro lado do riacho estava ajoelhada uma mulher lindíssima, com tez muito clara e profundos olhos cor de mar. O denso nevoeiro tinha dado lugar a uma brisa que levantava algum do tecido que a cobria, sugerindo quase uma bandeira a esvoaçar após uma conquista que não chegou a conhecer.
“Como te chamas?” – perguntou ainda mal refeito.
“Gilda.”
“Mas és tão bonita, porque choras o céu?”
“De que vale a beleza quando não é o meu céu? O meu está muito longe, lá para o Norte onde a terra é branca e a chuva cai em flocos de neve.”
“Não conheço uma terra assim... é mágica?”
“É tão mágica quanto a tua. Como terra, dela temos saudade e por ela tudo pensamos, fazemos e sofremos até ao anunciado e prometido regresso.”
Sebastião emocionou-se. Teria encontrado uma alma gémea, alguém que sofresse a distância tanto quanto ele, alguém que a sentisse como se fizesse parte do corpo, da alma? Sentiu crescer-lhe uma enorme vontade de poder ajudar Gilda e decidiu que a sua nova demanda seria conquistar-lhe um céu e uma terra igual à da sua origem.
Atravessou o riacho e perguntou-lhe tudo sobre essa terra branca e distante. Aprendeu a neve e porque era Gilda tão clara quanto a sua imagem... devia ser belo esse longínquo lugar para ter uma filha assim. A noite surgiu pouco depois e Sebastião ofereceu-lhe o único abrigo que possuía, a velha manta tão esburacada quanto a sua alma. Na manhã seguinte, acordou mais cedo e mentiu com um sono alerta. Viu Gilda a afastar-se e aceitou o crescente frio e chuva a cada seu passo dado. Desta vez Sebastião não se assustou e sentiu cada gota como se fosse um floco de neve, aguardando serenamente que as lágrimas longínquas parassem e que Gilda reaparecesse na sua imaculada e pacífica brancura.
Assim aconteceu, a chuva amainou, o céu deixou passar os primeiros raios de luz e lá estava a bela Gilda, menos triste que no dia anterior. Olharam-se durante longos minutos como se à espera de um céu que ambos servisse. Os dias seguintes foram passados assim, sempre com momentos de dilúvio causados pelas lágrimas de Gilda e um nevoeiro escuro que trespassava o coração de Sebastião. Mas esse intervalo era cada vez menos demorado, o que esperançava o adormecido coração de rei e lhe dava mais força, dia a dia, para que tentasse encontrar um destino. Numa dessas noites, enquanto Gilda dormia, chamou pela Honra e aconselhou-se com ela:
“Honra, como poderei conquistar o céu e o coração desta bela dama?”
“Tens que procurar dentro de ti, bem no fundo do que foste.”
“Mas o meu coração está negro, a minha alma enterrada”.
“O coração de um rei nunca morre. É a sua natureza!”
“O meu bate forte cada vez que Gilda sofre...”
“É a vontade da conquista, seja ela de terras ou de amor.”
“Não compreendo, Honra. Como pode um coração desfeito reconquistar algo?”
“Já te disse, está na tua natureza. Procura a resposta bem dentro dela e conseguirás o teu objectivo”.
Sebastião não dormiu o resto dessa noite. Muito pensou e muito penou pela solução que teimava em esconder-se. Cansado pela insónia, observou Gilda a acordar junto a si e decidiu caminhar para norte, sempre para norte em busca das origens da sua crescente paixão. Gilda admirou-o e, no fundo do seu coração, sentiu que crescia algo dentro dela por este rei que preferia abandonar a sua desejada terra para encontrar uma outra que a fizesse feliz.
Continuaram a viagem, mas no minuto antes de atravessarem a fronteira alentejana, o extremo cansaço fez com que Sebastião tropeçasse numa raiz de uma árvore diferente de todas as outras. Ao estatelar-se, bateu com força no seu tronco e, ainda mal refeito pela surpresa, reparou nas folhas dessa árvore que caíam sobre ele, folhas que pareciam flores brancas, lindas e mágicas que se estenderam num tapete aos seus pés. Olhou para Gilda que, sem palavras, uniu as mãos bem juntas ao peito, como se algo divino tivesse caído do céu. Sebastião sorriu, inundado por uma felicidade que há muito não sentia. Com um movimento rápido, encheu as mãos com as sementes desta árvore mágica. Levantou-se, abraçou Gilda e recomeçou o caminho para norte, deixando cair uma semente a cada passo dado, traçando uma linha de esperança que alimentava o seu coração.
A noite chegou, amena e pacífica. Sebastião agasalhou Gilda com a velha manta, sentando-se a olhar o caminho percorrido e agradecendo à sua Honra por mais um conselho bem dado. Adormeceu embalado pelos primeiros chilreados de uns pássaros mais atrevidos que esvoaçavam alegremente em pequenos círculos em redor deste estranho casal.
Sebastião pediu ao sonho que fizesse com que estas sementes dessem lugar a árvores mágicas cujas flores fossem imaculadamente brancas. E mais pediu: se isso acontecesse, elas também poderiam dar alimento às gentes que tinham abandonado estes lugares, fazendo-as regressar e repovoar. Sabia que era pedir demasiado, mas os sonhos servem os desejos de quem não tem medo. E Sebastião nunca fora um rei medroso....
Acordou sobressaltado!
Olhou a manta que jazia solitária no chão. Agarrou-a e com ela escondeu-se da chuva que adivinhava com o afastamento de Gilda. Esperou. Esperou ainda mais tempo e, em vez da chuva e do nevoeiro, olhou para um sol que se mantinha vivo e alto. Num repente ouviu umas gargalhadas cheias de uma felicidade reencontrada. Destapou-se e olhou em volta... tudo estava branco, o chão, os ramos, as árvores, tudo, tudo! Levantou-se e correu até aos gritos felizes de Gilda, só parando quando a reencontrou a rodopiar e dançar sem parar. Ficou a amá-la  durante muito tempo, não evitando um sorriso crescente a cada geração esquecida.
Era o primeiro sorriso em muito, muito tempo.
Com muito, muito tempo.

   


Os caixotes em Lx







N. do A. Texto lido no programa da RCP - 23ª Hora com Nuno Infante do Carmo (música sem playlist)


Sou um fulano quase antigo, a fiar no que se diz por aí que “os quarenta são os novos trinta” e parvoíces do género.

Ao longo dos anos, e porque a escrita sempre fez parte da minha vida, tenho vindo a acumular caixotes com pastas de documentos, cadernos, blocos e resmas A4 com textos, frases soltas, futuros best-sellers, pensamentos mórbidos, desenhos e, claro está, rabiscos.
Como quase antigo que sou, já utilizo computadores há muito, muito tempo. Lembro-me bem do primeiro. Chamava-se Amiga. O segundo era um Macintosh Classic. A partir daí é como as relações, já não me lembro de mais nenhum nome a não ser o actual. Ou actuais, pois não lhes sou fiel.
Ao longo dos anos, trabalhei que me fartei nos computadores. Todas as minhas profissões o exigiram, desde as mais corriqueiras às mais técnicas e complicadas. Todos eles foram companhia diária, muitas das vezes noctívaga.
Todo este trabalho resultou, logicamente, em mais documentos de vários formatos e consequente agravamento do espaço disponível em casa e no escritório.
Antigamente, chamava-se a este acumular de tralha, pastas de documentos. Mas hoje denomina-se Folder. É um inglesismo que se aceita, pois sendo generalista no conteúdo e na forma, não precisa de mais explicações.
A única coisa que não mudou desde o uso intensivo do papel às caixinhas digitais é a necessidade de armazenamento. O que outrora era papel pesado, amarelecido e empoeirado, hoje é disquete, cd, dvd, usb, externo, interno e bluray. Até ver...
Ambas as toneladas de informação são, na maior parte dos casos, arrumadas em caixas, caixinhas e caixotes, o que me fez pensar...
Afinal, nada mudou do antigamente para agora.
As memórias podem mudar de forma, mas a forma de guardá-las é exactamente a mesma.
O problema é que sou um fulano quase antigo. Se fosse uma década mais novo, teria escolhido uma profissão de futuro, em vez destas coisas da escrita em Portugal. A escolha não passaria pela informática, publicidade, design, vídeo ou música, mas apenas e só pela construção civil. O truque seria construir espaço e não projectar para a falta dele. Espaços grandes, médios e pequenos, como um caixote de cartão ou plástico, duradouro e multiformato.
Seria construtor de caixotes, grosso modo, que permitissem a pessoas tão antigas ou mais que eu, arrumar e guardar todas as memórias de uma vida.

O meu lado em Lx


N. do A. Texto lido no programa da RCP - 23ª Hora com Nuno Infante do Carmo (música sem playlist)

Tenho um lado preferido. É o meu lado e ninguém pode usurpá-lo.
Tenho o meu lado do sofá. É o direito, mais centrado com a Tv, e tem ao lado uma mesa onde estão os telecomandos e o cinzeiro. Tem a cova do meu rabo.
Tenho o meu lado da cama. É o esquerdo porque está mais perto da Tv que me embala o sono e os sonhos. Está ao lado da mesa de cabeceira com uma gaveta onde guardo aquilo que é necessário para uma noite a sós ou bem acompanhado. É lá que está o despertador e o candeeiro com luz ténue que me ajuda a acordar.
Tenho o meu lado da mesa. E desse lado fico com a cadeira mais à esquerda. É a que me permite ver toda a bela vista sobre Lisboa e ao mesmo tempo a que não tem mais nenhuma cadeira a servir de obstáculo para poder ir ao resto da casa.
Tenho o meu lado do carro. É o esquerdo porque é o de quem guia. Sou o melhor condutor do mundo e é raro sentar-me à pendura. Tenho medo de todos os outros que conduzem pior que eu e já fui expulso de carros de namoradas por causa desse pânico.
Tenho o meu lado político. Sou à direita da esquerda porque não gosto da esquerda. Nunca gostei e nunca gostarei. Não concordo com a utopia comunista e gozo com quem é bloquista. Dos socialistas nem vale a pena falar, pois poucos acreditam que existe uma esquerda.
Tenho o meu lado positivo. Sou boa pessoa, tenho amigos fiéis, sou depositário de segredos e confiança. Tenho orgulho no que já fiz. E tenho vontade de fazer mais.
Tenho o meu lado negativo. Sou crédulo e idiota. Sou demasiado racional e medroso no que toca a grandes mudanças que são sempre necessárias. E tenho vícios. Não drásticos, mas perigosos a longo termo.
Tenho um lado bom e um lado mau.
Gosto da vizinha da casa do lado e odeio o vizinho do outro lado.
Gosto muito de gelado e de um olhar melado.
E se não tiver ninguém a meu lado é para o lado que durmo melhor.

A liberdade em Lx

N. do A. Texto lido no programa da RCP - 23ª Hora com Nuno Infante do Carmo (música sem playlist)

O ser humano tem uma noção de liberdade, no mínimo, estranha. Andou a lutar por ela em revoluções, despiu soutiens, fez amor livre, usou drogas para atingir o nirvana e a noção do "eu" em relação a "nós" era importante.
Com a tecnologia tudo isso foi esquecido. E quantos anos se passaram?
Ora aqui ficam alguns exemplos:
Antigamente, só sabiam de nós quando chegávamos a casa. E era de casa que telefonávamos para casa dos outros. E era em casa que esperávamos pelo que os outros nos queriam dizer.
Agora estamos sempre contactáveis. Em todo o lado. Até mesmo na casa de banho. E se não atendemos imediatamente o telemóvel, é porque algo grave deve ter acontecido. E ainda levamos um raspanete enquanto gastamos um balúrdio por minuto.
Antigamente, levantávamos dinheiro no banco. E passávamos cheques. Dava algum trabalho, mas ninguém sabia o que fazíamos com ele, onde o gastávamos e que luxos pagávamos.
Hoje fazemos tudo no multibanco ou na banca online. Os cheques já são raros e ir ao banco levantar dinheiro até parece heresia. O problema é que o nosso nib mostra tudo o que fazemos, desde a compra da hortaliça a uma fruta mais apetecível e luxuriante... tudo se sabe. E tudo fica registado.
Antigamente, guiávamos com algum álcool a mais. Se éramos apanhados, coisa rara, conversávamos com o agente. Se mesmo assim ele passasse a multa, nós esquecíamo-la no porta-luvas. Até prescrever.
Hoje pagamos por multibanco logo no acto. E os nossos dados estão no computador do carro da autoridade. E apanham tudo o que já fizemos. E ainda por cima, as matrículas vão ter chip. Estamos chipados!
Antigamente, íamos a uma biblioteca para tirar fotocópias de um livro para um trabalho académico. Isso obrigava à locomoção e à aventura de estar e conhecer estranhos num local estranho.
Hoje vai-se à net e à wikipedia. E saca-se tudo com um toque de rato, mesmo que seja informação errada. Se está na net, é verdade. E ficamos em casa, acompanhados pelos amigos virtuais, por festas online e por fotos no facebook.
Perde-se a liberdade de mão beijada. Aliás, pagamos para ficar sem ela. Pagamos caro e todos os dias. E nem nos apercebemos que estamos cada vez mais apertados numa rede digital em que ser-se único começa a ser impossível.
E quem diz único, diz criativo, pensador, diferente, ousado, original e rebelde.
Ou seja, todos os adjectivos que fazem com que, de vez em quando, a humanidade ande para a frente.
E, neste momento, caminhamos para trás, todos os dias mais um bocadinho.
E mais um bocadinho.
E ainda mais um bocadinho.
E este...

Os bimbos de Lx

N. do A. Texto lido no programa da RCP - 23ª Hora com Nuno Infante do Carmo (música sem playlist)

Antigamente, quem chipava os automóveis era um foleiro. Um bimbo, que comprava todos os apetrechos para colocar no popó, desde santinhos com íman a autocolantes a dizer Turbo.
Cada vez que vejo um carro com tupperwares, ou seja, ailerons, saias, jantes especiais e faróis azuis, apetece-me telefonar à polícia para tentar impedir o atentado à indústria automóvel.
Essa gente não se fica pelo exterior. Muda também o interior com o pior gosto possível, montando um brutal auto-rádio e uns enormes woofers na mala.
Antes de se sentir o cheiro a pneu queimado já se ouve o bombo a estoirar.
Se antigamente esta gente era foleira, hoje está na moda. De bimbos passaram a tunners. De aceleras a street-racers.
O chip continua a fazer parte desta paixão. Chipa-se o auto-rádio, chipa-se o motor, chipa-se tudo. O que interessa é fazer mais barulho e andar mais depressa.
Acontece que este chip, como qualquer outro que modifique as características técnicas de fábrica, é ilegal. Sim, é ilegal!
Portanto, custa-me compreender como é que o Ministério das Obras Públicas pretende chipar as matrículas dos automóveis. Se é chip, é ilegal. Portanto, nem deveria haver discussão sobre o assunto. Mas estamos num país em que a ilegalidade é uma forma de lei. Vale tudo!
Ora, a questão de chipar as matrículas está a ser vendida como uma coisa boa para os automobilistas. A bandeira é, e passo a citar, “seguros automóveis accionados apenas quando o veículo circula e parquímetros sem necessidade de ticket”.
Impressionante, não é? Que bom!
Mas o problema é que este mesmo chip vai servir para coisas bem mais nefastas para a vida e carteira de quem usa o automóvel. Novamente citando, passamos a saber que servirá “para a cobrança de portagens virtuais, controlo e gestão de tráfego e fiscalização de infracções rodoviárias”.
A questão da privacidade, como por exemplo o registo de deslocação a todo e qualquer local, é assegurada pelo secretário de estado que promete, atenção, promete que isso não vai acontecer.
Ora como conhecemos bem a validade das promessas do governo, convém realçar a questão das portagens virtuais. Vamos pagar em tudo o que é sitio, mesmo naquelas que não têm portagem. Percebem a ideia?
Mas há vantagens para além do seguro e parquímetros: cobrança automática do abastecimento numa estação de serviço, controlo de acesso a zonas históricas das cidades e a terminais rodoviários e, como bónus, coisas importantes como abrir portas de garagens... para quem as tem.
Ora este fantástico chip, que é ilegal porque não vem de origem no automóvel e não consta do livrete, é mais uma forma que o governo encontrou para chipar a vida dos cidadãos, garantindo a permanente e perfeita vigilância sobre toda a nossa vida. Ah, e somos nós que o pagamos. Obrigatoriamente.
Portanto, o que vou fazer de seguida é comprar dois chips para o meu carro. Um que aumente em muito a potência do motor para passar tão depressa pelas máquinas que elas não tenham a rapidez necessária para a fotografia e outro para baralhar a informação que o chip oficial armazena não se sabe muito bem onde. Serei um foleiro, mas um foleiro livre e sem código de barras no pescoço.

DonDocas de Lx



N. do A. Texto lido no programa da RCP - 23ª Hora com Nuno Infante do Carmo (música sem playlist)

1

Diana gosta de janelas tortas. De prédios tombados, velhos e gastos. Gosta da alma dessas casas, de sentir que a vida passou naqueles quartos e salas. Talvez as penas de um poeta? Quiçá as cores de um pintor? Ou os cálculos de um contabilista?
Houve um dia que Diana conheceu a casa dos seus sonhos. Era perfeita, de 1930 com quatro pequenas assoalhadas, cozinha e quarto de banho generosos banhados por luz natural.
Foi ao banco e responderam-lhe que encontrasse uma nova, de betão armado, rectilínea, num bairro moderno de torres com 15 andares, garagem e arrecadação, pois é disso que os bancos gostam quando a crise chega.

2

Deolinda, na sua demanda pela vida, viajou da terra para a grande cidade, dos sabores de verdade para congelados ibéricos, dos odores naturais para os de baunilha floral condensada, da paz silenciada para a chiadeira urbana.
Sentia-se perdida até que descobriu deus, não na clássica forma divina mas na de cartilha.
Deolinda já sabe ler e conta os dias para ter uma filha que depois tenha filhos. Irá adorar contar-lhes histórias, no seu terraço junto ao carvalho velho, sobre a grande cidade que um dia lhe deu o mundo.

3

Diana gostava de ouvir música na paragem de autocarro. Fugia assim da vida, da fila e das discussões sobre o nada de tudo que lhe eram nada. Apenas lhe interessava o transporte onde entrava muitas vezes sem sequer olhar para o número e destino final. Qualquer um servia e era confortável não ter que tirar os olhos do telemóvel com leitor mp3.
Fez mal. Nunca reparou num gentil rapaz que passou a apanhar o mesmo autocarro por causa dela. Só por ela, para adorar as suas formas, perder-se nos seus lábios, imaginar o amor que lhe ofereceria.
Um dia este rapaz mudou de emprego. E de carreira.

4

Dulce gostava de pintar casas. A sua mudava de palete sazonalmente. Usava as cores da sua vida e coração, umas vezes quentes e apaixonadas, outras húmidas e desamparadas.
Começava sempre pelo quarto que lhe servia de cama onde dormia e era amada, adorada e esquecida. Seguiam-se as outras divisões, em tons mesclados de doçura ou resignação. Nesse ano Dulce não se sentia confortável na sua própria casa e percebeu finalmente que o que deveria pintar era somente a sua vida e corpo.
Decidiu tirar um curso de tatuador.



5.

Dalila, beta nascida e criada na Lapa, sempre foi cobiçada por muitos rapazes e até pelos pais de alguns desses rapazes. Contudo, não pisava o risco. A sua vida já estava estudada, planeada, controlada, prometida e anunciada.
Como em tantas outras alturas com raparigas iguais a ela, apareceu um badboy que a cortejou e encantou. Dalila deixou-se levar pela aventura e perigo, escusando-se aos seus antigos amigos, admiradores e pretendentes.
O seu coração vibrava com mais um assalto, uma luta de gangs, uma noite na esquadra.
Um dia foi engravidada pelo seu príncipe das trevas. Contra tudo o que vem nos filmes, ela abortou. É hoje uma mulher feliz.

Envelhecer em Lx

N. do A. Texto lido no programa da RCP - 23ª Hora com Nuno Infante do Carmo (música sem playlist)


Com a idade a avançar vou perdendo, naturalmente, algumas faculdades. Uma delas é a capacidade 10/10 da visão, coisa que, confesso, nunca tive. Outra é a capacidade motora; acredito que já não aguento correr uma maratona, coisa que, aliás, nunca fiz. Mas de todas as restantes, a faculdade que mais prezo é a memória.
Curiosamente é esta que mais me tem falhado ao longo dos dias e, pasme-se, das e nas noites.
Devido a este meu pânico instalado, acredito que, num futuro próximo, o homem invente toda uma tecnologia maravilhosa para combater esta nefasta e silenciosa tragédia. Estou até em crer que tal artimanha já existe e tem o tamanho da cabeça de um alfinete. Esta peça será colocada por trás da córnea com ligação directa ao hipotálamo e terá múltiplas funções, como as impressoras tudo-em-um.
Vamos chamar-lhe Video-memo-sensor-hard-disk. É uma designação pomposa mas muito objectiva.
A sua função principal é captar em vídeo e áudio tudo o que os nossos olhos vêem. A imagem é em alta definição super HD e o som hiper estéreo com 1000 canais. Assim podemos ficar tranquilos sabendo que, mesmo que nos esqueçamos, tudo o que vemos, dizemos, vivemos e pensamos, fica registado num nano-disco rígido de 1 milhão de terabytes.
O video-memo-sensor-hard-disk terá três modelos com duas formas de funcionamento e de controlo:
Primeiro: Na versão base, logicamente a mais barata, o utilizador será sujeito a uma pequena incisão no antebraço esquerdo onde se colocará uns botões que comandarão todo o sistema, à semelhança do que já conhecemos dos dvds e antigos vhs. Ou seja, terá as funções rec, stop, play, rewind, forward e  pausa. É bem verdade, podemos pausar aquele momento único de que tanto gostámos.
Segundo: Temos a versão Plus Confort que já dá direito a todo um comando sensorial e por ondas cerebrais. Basta pensar para poder gravar, reproduzir, copiar e enviar por email aos amigos, aquilo que gostámos francamente de ter vivido ou experimentado.
Terceiro: Por último temos a versão especial de corrida, naturalmente denominada GTi Turbo Plasma. Esta é dirigida aos cromos geek freaks nerds da tecnologia, e cujas funções base são acrescentadas por maior capacidade de memória interna, mais rapidez de processamento, mais power e poder de alcance.  Em suma, um “maquinão” que até pode ser alvo de overclocking, o que certamente irá provocar a cobiça dos mais incautos e, correspondentemente, alguns acidentes, explosões no sistema cardíaco e muito vaso sanguíneo queimado. Se alguém exagerar, claro está. De resto, não há perigo.
Para concluir, só me interessa conseguir aceder a toda a minha vida quando for muito velhote. E tenho já preparado um upgrade: ao chegar a minha hora, instalo um virus no video-memo-sensor-hard-disk, que me permitirá escolher uma situação preferida, colocá-la em loop e repeti-la até à exaustão.